06 setembro, 2006

 

Tristes trópicos

No passado sábado, na Amazónia, foi assassinada uma investigadora portuguesa, de nome Vanessa Sequeira, que ali se encontrava em trabalho de pesquisa para a conclusão da sua tese de doutoramento. Ao que tudo indica, terá sido vítima de espancamento e asfixia (a hipotética violação está ainda por provar), provocando-lhe um traumatismo craniano, provável causa do óbito. O provável homicida (e a presunção de inocência é muito importante em qualquer estado de direito) está já detido, chama-se Raimundo Rocha de Lima, tem 36 anos e é um ex-presidiário que havia sido condenado por homicídio e se encontrava presentemente em liberdade condicional.

Ora, esta notícia levanta algumas questões pertinentes. Se bem se lembram, num espaço de poucos meses, dois cidadãos portugueses foram violentamente mortos em solo brasileiro, primeiro, um jovem esfaqueado em Copacabana, quando se encontrava de férias no sudeste do Brasil e agora o caso desta investigadora. Além de serem ambos portugueses os dois apresentam mais laços que os unem: eram, tanto um como o outro, membros válidos da sociedade, ele um brilhante estudante universitário, ela, uma bem sucedida investigadora no campo das Ciências Sociais. Exige-se pois, ao Estado português, uma posição firme face ao homólogo brasileiro. O que se diria já do outro lado do Atlântico se, em Portugal, fossem assassinados dois jovens e promissores cidadãos brasileiros num tão curto espaço de tempo? Ficamos pois à espera de uma tomada de posição, de um pedido de satisfações por parte das autoridades portuguesas face ao sucedido.

Outra das questões que urge aflorar quanto a este caso é a seguinte: se de facto o homicida é o tal ex-presidiário que estava em liberdade condicional, e tendo em conta a realidade portuguesa, que sentido terá hoje a pena de prisão enquanto medida de coação máxima no nosso sistema jurídico?

Como se sabe, o nosso Código Penal (C.P.) estabelece como pena máxima de prisão os 25 anos. Já não vou discutir a percentagem de casos em que o juiz resolve aplicar a pena máxima. Não sendo apologista da prisão perpétua (não me pronunciarei sequer sobre essa bizarria medieva que é a pena de morte), creio que 25 anos é manifestamente pouco enquanto pena máxima. Não vejo porque para um assassino, pedófilo ou violador a pena não poderia ser, digamos o dobro (o que equivaleria, de facto, a uma prisão perpétua).

Parece que na jurisprudência portuguesa, a prisão perpétua cumpre apenas uma função social, a reintegração do "condenado" na sociedade. É o próprio legislador quem o diz no artigo 40º - 1 do C.P. ("A aplicação de penas e medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade". Mais adiante, no artigo 43º vem-se a reforçar esta mesma ideia). Esse deveria ser, obviamente, o alcance primordial da pena de prisão. Mas deverá ser o único? E a punição do criminoso? Não deveria o culpado sofrer a prisão como expiação do que havia feito? E não serviria ela de exemplo para os demais cidadãos? Vendo o sistema judicial a funcionar correctamente, e atentando a que os criminosos são devidamente punidos pelos seus delitos, isto não evitaria eventuais tentações? E a salvaguarda da sociedade? Os cidadãos organizam-se em comunidades, comunidades esssas que exigem o respeito mutúo. Quem desrespeita os mais básicos princípios sociais não merece viver em sociedade, e a sociedade tem de ser defendida destes prevaricadores. E a prevenção do crime? O elemento detido é um potencial criminoso, ao prendê-lo estamos a evitar que esse elemento perpetue as suas actividades. E finalmente, e não menos importante, a recompensa para o lesado (ou seus familiares, em caso de homicídio)? Muitas vezes se vê a pena de prisão apenas do prisma do criminoso, esquecendo que a haver um crime terá de haver seguramente uma vítima. Ora, a pena de prisão, ao privar o criminoso do seu maior bem a seguir à sua própria vida (a liberdade), é a forma máxima de recompensar a vítima. Penso que a jurisprudência portuguesa foi ao longo dos anos expurgando a pena de prisão de todas as suas funções sociais mantendo apenas uma: a reabilitação do criminoso.

Uma vez chegados a esta conclusão resta saber se, pelo menos o próprio legislador acredita na sua própria teoria. Os portugueses em geral, sabemos que não. Nós sabemos que o nosso sistema jurídico funciona mal, e sabemos também que as nossas prisões corrompem mais do que reabilitam. Quando o português anónimo, ao jantar vê no telejornal a notícia de um qualquer indivíduo que foi condenado a prisão por assassinato ou violação (não menciono propositadamente a pedofilia, que em Portugal não tem o mesmo peso dos outros dois crimes que mencionei, sendo até por vezes tolerado. Por Deus, até um Presidente da República (da Primeira, entenda-se!) era pedófilo, toda a gente o sabia e não foi por isso que deixou de ser eleito!), o nosso anónimo concidadão deseja ardentemente que o prevaricador lá passe um bom bocado, não propriamente para sair de lá reabilitado e pronto para viver em sociedade, mas que lá apodreça e, se possível, que de lá não regresse!

O legislador no fundo pensa de igual forma. Por um lado, é bem intencionado, espera ingenuamente que alguém que foi condenado a 20 anos de prisão por homicídio, passe o seu tempo a tirar cursos técnico-profissionais, enquanto cresce como pessoa para se vir a tornar num mebro válido da sua comunidade. Por outro lado, porém, dispõe que a liberdade condicional (tema tratado no artigo 61º do C.P.) será atribuída quando estiver cumprida metade da pena de prisão, ou então, quando se cumprirem dois terços da pena, nos casos em que a pena seja maior de 5 anos e onde estejam em causa crimes "contra as pessoas". Finalmente, "o condenado a pena de prisão superior a 6 anos é colocado em liberdade condicional logo que houver cumprido cinco sextos da pena". Ou seja, ainda que uma pessoa seja condenada à pena máxima em Portugal (25 anos), é juridicamente impossível que cumpra na totalidade essa mesma pena.

Qual é a justificação do legislador? O legislador, como já atrás disse, define a pena de prisão essencialmente como forma de reabilitar o indivíduo. Ora, se o indivíduo não se reabilitou durante cinco sextos da pena, não é no último sexto que se vai reabilitar! Portanto, se já está reabilitado ao fim dos tais cinco sextos, muito bem! Se não está... estivesse! O legislador, ao fim e ao cabo, é o primeiro a reconhecer a falibilidade do nosso sistema jurídico. E Portugal, vendo o panorama da sua criminalidade a modificar-se incrivelmente (já não somos o país de brandos costumes onde os (raros) homicídios se deviam a uma minúscula parcela de terreno agrícola, ou a assuntos de faca e alguidar), mantém a mesma análise dos factos, como se o Zé do Telhado ainda fosse o estereótipo do criminoso português.

Comments:
Meu Caro Conde:
Mas olhe que, mesmo proporcionalmente, nunca tanta gente foi executada como na época contemporânea. O pobre período medievo tem é as costas largas.
Eu defendo a pena de morte para os crimes de homicídio qualificado; e só para esses, porque entendo que nenhuma sociedade é digna se não elimina do seu seio os autores das condutas desumanas que considera mais revoltantes. O que é muito diferente das condenações sem culpa ou julgamento justo a que, desde a Revolução Francesa para cá nos habituaram.
Abraço.
PS:A investigadora foi encontrada despida, pelo que a violação é bem possível. E era gira, o que constitui agravante do homicídio.
 
Meu caro PCP (se me permite tratá-lo assim):

Como deixo implicitamente no post, não posso sequer considerar a hipótese de em Portugal se voltar a reinstaurar a pena de morte. Não vou utilizar outro argumento que não o da própria ilogicidade da mesma: como se explica que o Estado possa punir alguém com o mesmo crime (o homicídio) de que acusa essa mesma pessoa? Não lhe parece um certo regresso à Lei de Talião?
Outro abraço.
 
Miseráveis!
Caro conde:
Isso e uma vergonha inqualificável!
Espero que visite o meu blog e veja a homenagem que fiz ao Chico Mendes para sentir o que sinto pelos escroques que ofende a natureza...

www.rouxinoldebernardim.blogspot.com
 
Excelente análise, caro Ferreira.
Se se não deseja voltar à idade das trevas, há contudo, que aos reincidentes, provocar deliberadamente desconforto enquanto estiverem presos, pois só assim pensarão duas vezes antes de...

Cumprimentos
 
Excelente texto! Pelo que sei, em Portugal alguns blogs acabam por ter a sua versão literária. daqui a alguns meses, vocês até poderiam arriscar a edição de um livro. Creio que já vai havendo material para concretizar esse projecto.
Um abraço
 
Amigo Conde:
Vejo que regressaste de férias em grande forma, pela qualidade dos textos apresentados. Por acaso tenho curiosidade de saber qual seria a reacção da imprensa brasileira se uma situação análoga acontecesse no exterior...
Nestas hortas eu pergunto onde estão as autoridades diplomáticas nestas horas. No ano passado mataram uma missionária norte-americana na Amazónia e rapidamente a sua embaixada tomou providências. Agora nestes casos, nada vejo e estou convencido que o nosso corpo diplomático gosta muito muito é de viver enclausurado nas belas casas que lhes arranjam e rezando para que nada aconteça com cidadãos portugueses que vivem nos quatro cantos do planeta.
 
Galo Negro:
Livro? Nunca pensámos nisso, mas se calhar até não seria mal pensado. A prosa é um pouquinho melhor que uma qualquer Rebelo Pinto... :)
 
Só para esclarecer, meu Caro Conde que não vejo como sendo da mesma natureza o assassínio bárbaro de uma Pessoa inocente e a execução de um miserável assassino que, pela desumanidade da sua acção, perdeu o direito a ser considerado um ser humano. A conduta muda a qualidade do ser eliminado, logo a qualificação do acto eliminatório.
Abraço.
 
Caro Paulo Cunha Porto,

Além de nacionalista sou profundamente humanista. Não concebo, pura e simplesmente (por maior aberração que cometa), como é que um ser humano pode perder essa sua condição.
Enquanto o direito à vida não for um direito inalienável (o primeiro de todos) não passaremos da cepa torta.
Suadações.
 
bom post/analise :)
abraço
 
Um belo país que nos tem dado muitas tristezas---
 
Meu Caro Conde:
Se qualquer pessoa nasce, inalienavelmente, com o estatuto intocável de Ser Humano, que a precede, pode perdê-lo moralmente se, pela sua conduta cair na desumanidade inominável que é um homicídio com circunstâncias modificativas especiais de qualificação. Tratar como humano o desumano é uma mentira. E, pior, uma injustiça.
Abraço.
 
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