14 setembro, 2006
Cuéntame cómo pasó

Não é um fenómeno novo, vários programas de entretenimento, ao longo da história televisiva, eram formatos comprados que foram mais tarde adaptados ao contexto português. Uma espécie de “franchising” televisivo. Não pretendo fazer uma diatribe anti-televisiva de cariz pseudo-intelectual, até porque, se pensarmos bem, o teatro também está a recorrer frequentemente a este expediente (“Monólogos da Vagina”, “O Método Grohnolm”, etc...). Talvez porque as televisões, com todo o capital inerente ao seu funcionamento, tenham medo de falhar, elas apostam em formatos que já provaram o seu sucesso, ainda que noutro país. E recentemente algumas apostas foram ganhas e bem ganhas, como nos casos dos famigerados “Big Brother” e da sumamente irritante e marxista “Floribela”, só para citar os casos mais óbvios.
Morando em Espanha pude assistir ao original de duas séries que mais tarde forma adaptadas ao contexto luso: “Aquí no hay quien viva” e “Camera Café” (este último não sei se o original é de facto espanhol, mas estreou primeiro aqui). E se por um lado o segundo programa é uma espécie de grande-chavão que poderá resultar em qualquer país (até porque se baseia num "não-lugar”, uma câmara fixa numa máquina de café numa qualquer empresa), o primeiro deles, esse genuinamente espanhol, dificilmente poderia transformar-se num êxito de share. Por diversas razões: a realidade urbana espanhola não é exactamente igual à portuguesa, distando até por vezes de sobremaneira (“a ver”, quantos prédios em cidades portuguesas têm porteiro?, uma das personagens principais, se não mesmo a principal da série; quantos prédios têm pátio interior?, espaço cénico onde decorre grande parte da acção; com que frequência habitam os nossos prédios casais de “gays” e de lésbicas com relações assumidas?; com que facilidade solta o português interjeições equivalentes às esperpênticas “joder!”, “no jodas!”, “me cago en la hostia!”, “de puta madre!”? isto para não ofender os mais católicos...). Por muito boa que fosse a produção, a realização, a direcção de actores, a mise-en-scène e o argumento, algo falharia pela base. Parece que foi mais ou menos isso o que sucedeu (com muita pena minha, já que uma antiga aluna minha, a minha querida Belén Granados, está directamente envolvida na adaptação desta série).
Por outro lado, há uma série que passa na TVE há já alguns anos que poderia ser adaptada (no verdadeiro e Histórico sentido da palavra) à nossa realidade. Chama-se Cuéntame cómo pasó e é basicamente a saga de uma família de classe média-baixa (os Alcántara), que vivendo num bairro proletário da capital espanhola (o imaginário San Genaro, que se situaria algures, para quem conhece Madrid, na zona de Aluche/Carabanchel), atravessam os anos de 40 até 1989. Este é basicamente o período que medeia o fim da sangrenta guerra civil espanhola (1936-39) e a entrada de Espanha na CEE e posterior início da bonança económica. A parte de leão da narrativa cabe assim à ditadura franquista (que termina em 75). É, pois, uma óbvia tentativa de fazer uma catarse da história. A série não fala de políticos (eles são mencionados, claro está!), mas o centro da trama é, como já disse, uma modesta família, com os seus problemas quotidianos, e com a sua vivência num país que vivia, “mientras tanto” uma ditadura totalitária.
O “trabalho de sapa” é de um bom gosto inexcedível: houve toda uma preocupação de reconstruir cenicamente as 5 décadas retratadas pela obra. Nos décors, nos penteados, no guarda-roupa, no product placement... até na própria linguagem! A narrativa vai avançando e quem lhe dá o mote é a própria história: lembro-me do assassinato, cometido pela ETA, do então presidente do governo, Carrero Blanco em Dezembro de 1973, ou da própria revolução portuguesa de Abril de 1974, retratada no episódio que ontem, dia 14 de Setembro, foi emitido (um dos filhos do casal, Antonio, é jornalista –e activo militante comunista-, e é enviado a Lisboa para cobrir os acontecimentos. Em Portugal conhece uma fotógrafa freelancer chamada Carmen (haverá nome feminino mais espanhol?), nada mais, nada menos que a nossa Maria de Medeiros, que cede também excertos do seu filme “Capitães de Abril”, que juntamente com imagens da época dão algum grau de fidedignidade ao episódio).
Os actores são, em grande medida, muito bons, e destacaria os que dão o corpo ao pai de família Antonio Alcántara (o excelente Imanol Arias) e à mãe e amantíssima esposa Mercedes, interpretada pela espantosa (no sentido português da palavra) e deslumbrante Ana Duato.
Está claro que o espanhol é um povo mais atreito a fazer a sua catarse, ainda que seja a berros, ainda que seja a murro (aí está o flamenco que grita, onde o fado cala). Por natureza, “nuestro hermano” é impositivo, diz a sua opinião, por mais dispar que seja, sem pestanejar. E isto depressa. E isto alto (aí está o castelhano que abre as vogais, onde o portugês as fecha). Como causa disto, ou como consequência, tiveram a guerra civil (onde nós tivemos o inerte salazarismo). Como causa disto, ou como consequência tiveram uma transição democrática (onde nós tivemos um PREC). O espanhol gosta de chegar a termos com os vivos (um professor de História Contemporânea Portuguesa da FLUL, proibiu-me de fazer um trabalho sobre a influência d´ “O Independente” durante o cavaquismo porque e passo a citá-lo “Em Portugal, a historiografia não se faz com as pessoas vivas”...), de fazer as suas contas com a história (há pouco mais de um ano, Santiago Carrillo, antigo líder do PCE e provável responsável pelo fusilamento de entre 2396 a 5000 pessoas em Paracuellos de Jarama e Henares, foi confrontado publicamente com estas acusações num acto público, chegando mesmo a ser supostamente agredido. Nós deixámos morrer Álvaro Cunhal, sem nunca o confrontar com as suas decisões e vamos deixar morrer Otelo (e demais copconner´s, e demais FdP-25) sem os julgar enquanto eles forem vivos).
Por que não se pega nesta ideia, neste formato e não se tenta aplicá-lo em Portugal? Com um trabalho sério de tratamento de época (temos meios para o fazer, vide “Os Imortais” de António-Pedro Vasconcellos), com bons actores (que os temos), com bons guiões e punchlines (a ver se deixamos de uma vez por todas para trás o típico humor de caserna, mescla de lupanar do Martim Moniz com revista do Parque Mayer). Mas sobretudo, com um bom apoio histórico por trás, recorrendo aos bons historiadores contemporâneos (João Medina, José Manuel Tengarrinha, Pacheco Pereira, Costa Pinto, Rui Ramos, Maria Fátima Bonifácio, Vasco Pulido Valente, António Ventura, Ernesto Castro Leal...) que dêem à série um enquadramento fidedigno.
A ver se fazemos, de uma vez por todas, as pazes com a nossa história. As pazes com os nossos mortos. As pazes connosco mesmo.
Comments:
<< Home
Meu caro Conde,
Todo este post (que li atentamente e com bastante curiosidade), me desperta a vontade de comentar e gritar ao mundo o que penso de tudo isto (ora ai está o resultado de trabalhar dia-a-dia com os espanhóis…).
Contudo, todo o meu comentário se traduziria num simples (e sem graça) discurso de apoio (porque concordo com o que se disse e com o que se sugere- sim, porque não vale só criticar!) mas não vamos querer maçar ninguém....
Mas já agora.... Porque não dizer a esse Exmo. Sr. Prof. da FLUL que leia o mais recente livro de Maria Filomena Mónica Bilhete de Identidade???
Com a leitura do mesmo, o Exmo. Sr. Prof. da FLUL poderá constatar que em Portugal se fazem (e sempre se fizeram) trabalhos historiográficos sobre figuras públicas vivas e bem vivas!
Todo este post (que li atentamente e com bastante curiosidade), me desperta a vontade de comentar e gritar ao mundo o que penso de tudo isto (ora ai está o resultado de trabalhar dia-a-dia com os espanhóis…).
Contudo, todo o meu comentário se traduziria num simples (e sem graça) discurso de apoio (porque concordo com o que se disse e com o que se sugere- sim, porque não vale só criticar!) mas não vamos querer maçar ninguém....
Mas já agora.... Porque não dizer a esse Exmo. Sr. Prof. da FLUL que leia o mais recente livro de Maria Filomena Mónica Bilhete de Identidade???
Com a leitura do mesmo, o Exmo. Sr. Prof. da FLUL poderá constatar que em Portugal se fazem (e sempre se fizeram) trabalhos historiográficos sobre figuras públicas vivas e bem vivas!
Os maus programas qu eabundam nas tvs generalistas imperam e prosperam dia para dia.É por istoq ue passei a ver canais temáticos, ao menos sei o que conto.Somos bombaredeados com séries mediocres emhorarios nobres e as de qualidade passam em certos canais depois da uma da manhã.
http://www.oblogdanalga.blogspot.com/
http://www.oblogdanalga.blogspot.com/
Rita de Freitas Martins said:
"Mas já agora.... Porque não dizer a esse Exmo. Sr. Prof. da FLUL que leia o mais recente livro de Maria Filomena Mónica Bilhete de Identidade???
Com a leitura do mesmo, o Exmo. Sr. Prof. da FLUL poderá constatar que em Portugal se fazem (e sempre se fizeram) trabalhos historiográficos sobre figuras públicas vivas e bem vivas!"
Olhe que não, Rita! Olhe que não! O livro da MFM é, também por isso, mas não só (porque nele, uma mulher -ó heresia total!- diz que foi para a cama com determinados cavalheiros! E pior! que gostou!) uma grande pedrada no charco. Se quer falar de pessoas vivas é melhor dizer bem delas! É que pode sempre estar em jogo um aumento de salário, uma bolsa de estudo ou pura e simplesmente o próprio trabalho, da pessoa que fala ou de um familiar ou amigo. Se tiver paciência recomendo-lhe o livro Conquistadores de Almas de Pinto de Sá. E depois veja o que dizem dele (do livro e do autor) nos mass media e mais particularmente na internet.
Vá aparecendo!
Mi casa és tu casa.
"Mas já agora.... Porque não dizer a esse Exmo. Sr. Prof. da FLUL que leia o mais recente livro de Maria Filomena Mónica Bilhete de Identidade???
Com a leitura do mesmo, o Exmo. Sr. Prof. da FLUL poderá constatar que em Portugal se fazem (e sempre se fizeram) trabalhos historiográficos sobre figuras públicas vivas e bem vivas!"
Olhe que não, Rita! Olhe que não! O livro da MFM é, também por isso, mas não só (porque nele, uma mulher -ó heresia total!- diz que foi para a cama com determinados cavalheiros! E pior! que gostou!) uma grande pedrada no charco. Se quer falar de pessoas vivas é melhor dizer bem delas! É que pode sempre estar em jogo um aumento de salário, uma bolsa de estudo ou pura e simplesmente o próprio trabalho, da pessoa que fala ou de um familiar ou amigo. Se tiver paciência recomendo-lhe o livro Conquistadores de Almas de Pinto de Sá. E depois veja o que dizem dele (do livro e do autor) nos mass media e mais particularmente na internet.
Vá aparecendo!
Mi casa és tu casa.
Meu Caro Conde:
É uma excelente sugestão, mas que julgo só começar a ser possível com a nova geração de actores, o que inviabilizaria os papéis de personagens menos jovens. É que a anterior geração, em tudo o que se refira à Realidade, resvala sempre para um tom revisteiro, independentemente do mérito que, nesse registo, tenha.
Abraço.
É uma excelente sugestão, mas que julgo só começar a ser possível com a nova geração de actores, o que inviabilizaria os papéis de personagens menos jovens. É que a anterior geração, em tudo o que se refira à Realidade, resvala sempre para um tom revisteiro, independentemente do mérito que, nesse registo, tenha.
Abraço.
Caro Ferreira Martins,
Não sei se teve a oportunidade de ler a minha resposta aos comentários dos tais blogs sobre Os conquistadores de almas.
Caso não, pode consultá-la ( e comentá-la) neste blog:
http://conquistadoresdealmas.blogspot.com/
Cumprimentos cordiais,
Pinto de Sá
Não sei se teve a oportunidade de ler a minha resposta aos comentários dos tais blogs sobre Os conquistadores de almas.
Caso não, pode consultá-la ( e comentá-la) neste blog:
http://conquistadoresdealmas.blogspot.com/
Cumprimentos cordiais,
Pinto de Sá
Caro Ferreira Martins,
Não sei se teve a oportunidade de ler a minha resposta aos comentários dos tais blogs sobre Os conquistadores de almas.
Caso não, pode consultá-la ( e comentá-la) neste blog:
http://conquistadoresdealmas.blogspot.com/
Cumprimentos cordiais,
Pinto de Sá
Enviar um comentário
Não sei se teve a oportunidade de ler a minha resposta aos comentários dos tais blogs sobre Os conquistadores de almas.
Caso não, pode consultá-la ( e comentá-la) neste blog:
http://conquistadoresdealmas.blogspot.com/
Cumprimentos cordiais,
Pinto de Sá
<< Home