06 julho, 2006
As Time Goes By...

O problema que despoletou toda a discussão foi o facto de Bénard da Costa ter completado 71 anos, e o Estatuto da Função Pública só permitir que os trabalhadores prolonguem a sua vida laboral até aos 70.
A legalidade e os contornos jurídicos da questão ficarão para quem se interessar por isso. Para mim, basta saber que Bénard da Costa continuará como responsável máximo pela instituição que mais dignifica o cinema, enquanto arte, em Portugal. Bem sei que o seu mandato não tem sido propriamente consensual, mas antes de Bénard da Costa a Cinemateca Portuguesa era um tugúrio elitista que muito poucos frequentavam. Hoje em dia não se pode dizer que tem propriamente a assitência do multiplex do Colombo, mas também não é isso que se espera de uma instituição como uma Cinemateca.
Quando se aventou a possiblidade de Bénard da Costa sair da Barata Salgueiro, muitas foram as pessoas que começaram a esfregar as mãos. Dezenas de intelectualóides da nossa praça, com aspirações mais ou menos assumidas em ter alguma notoriedade ao nível da promoção e programação da sétima arte no nosso país, sairam das suas tocas para vir fazer algazarra na rua. Criticaram a política de programação da Cinemateca Portuguesa, por esta ser excessivamente “conservadora”. Esqueceram-se que Bénard da Costa provém daquela escola de “cinéfilos” que descende directamente de Henri Langlois, o mítico director da Cinemathéque Française, e talvez o primeiro homem a ter consciência de que o cinema era uma arte a preservar para a posterioridade como qualquer outra arte nobre. A Sétima Arte. Esqueceram-se que Bénard da Costa se filia nas escolas das “novas vagas”, as primeiras escolas a deter verdadeiramente uma consciência histórica do cinema enquanto tal, enquanto arte. Enfim, esqueceram-se que Bénard da Costa gosta genuinamente de cinema.
Por eles a Cinemateca mudava inelutavelmente de rumo. Cortava-se radicalmente com o passado. A programação seguiria uma vertente elitista e “politizada”. Passaríamos a ver o cinema dos amigos, ou, pior, deles mesmos. A vertigem do Cinema seria a vertigem do umbigo. Passaríamos a ver cinema feito por pessoas que nunca viram Murnau. E mais, que se orgulham disso mesmo. E para quem gosta mesmo de Cinema, não ter visto Murnau é uma pena, mas orgulhar-se disso é um crime.
Sintomático disso mesmo é um episódio que se passou comigo há uns anos na Barata Salgueiro. A Cinemateca programara um dos filmes que eu mais pena tinha de não ter ainda visto: The Birth of a Nation de D. W. Griffith, um filme de 1915 (e, portanto, a preto e branco; e, portanto, mudo) que se considera ser uma das primeiras obras-primas do cinema moderno (ou do cinema, for that matter...). Era uma daquelas sessões das 15h a um dia da semana. (Parêntesis para explicar a quem não conhece que, normalmente, estas sessões a estes dias estão, literalmente, às moscas, e as poucas pessoas que ali podemos encontrar são geriátricos aposentados que passam a vida a colecionar visionamentos da filmografia de cineastas como Anthony Mann ou Richard Fleischer...). Ora acontece que quando transpus os portões da Cinemateca deparei-me com três ou quatro dezenas de jovens na casa dos dezoito, dezanove anos. Cedo percebi pelas conversas que eram alunos do primeiro ano de cinema, e que um professor de uma qualquer cadeira teórica os havia levado para visionar aquele histórico “opus”. Histórico para o professor, claro está! Porque como vamos cativar a atenção de quarenta adolescentes (rapazes e raparigas) em plena sala escura, com um filme a preto e branco, e ainda por cima, heresia das heresias, mudo? (posto que nessa sessão, como em algumas outras onde a obra apresentada é do período mudo, a Cinemateca convida um pianista para acompanhar a projecção do filme). Instalou-se uma algazarra tal, com a miudagem interessada em tudo, excepto em ver o bom do Griffith. Houve intercalações entre os alunos e os demais assistentes, com o professor a mandar calar alunos universitários, houve telemóveis a tocar; houve “bocas” e recadinhos dos imberbes... Enfim, um autêntico chavascal como há muito não via. A minha primeira reacção foi um óbvio “parto-te as trombas, animal!”, mas depois de digerida a congestão a coisa acaba por compreender-se. Uma pessoa com dezoito anos que se mete hoje numa escola de cinema term como referências cinematográficas uma miríade de autores: Kubrick, Fellini, Woody Allen, ou mesmo, Kiarostami, Oliver Stone, Goddard, por aí fora...
Depois de alguma convivência com outros “adictos” o neófito adentra-se pela obra de Angeopoulos, Röhmer, Truffaut, ou mesmo os “suspeitos do costume” Lang, Bergman, Ford e, inclusive, Hitchcock. Mas seguindo uma espécie de padrão: cineastas de “autor”, que granjearam ou granjeiam de um certo culto “personalista”.
Para quem assim pense, o cinema é uma tabula rasa, sem passado, sem memória. O subjectivismo justifica qualquer interpretação e qualquer atitude artística.
Ora, cortar com os “historicistas” de que Bénard da Costa é um lídimo representante, seria como interromper a projecção de um filme de que estamos a gostar muito.
Pôr no seu lugar os “elitistas” do costume, que teimam em acreditar que o cinema é uma arte de que apenas meia dúzia de iluminados podem disfrutar, seria como pagar para ver Htichcock e vermos depois Bela Tarr.
A propósito do filme que mais recordações fílmicas faz a todos, mesmo àqueles que nunca o viram, a ponto de a frase pela qual toda a gente conhece este filme (“play it again, Sam!”) nunca ali ser dita, diz Bénard da Costa:
“Se viu Casablanca, amará, até ao fim, Bogart e Bergman. E procurará toda a sua vida o Rick´s Bar em Casablanca, sabendo perfeitamente que não há nenhum Rick´s Bar em Casablanca e que não há outra Casablanca senão aquela onde um dia se encontraram e se perderam Ingrid Berman e Humphrey Bogart. Se isto não for o cinema é porque o cinema não existe. Nem eu, nem tu. Nem nenhum de nós.”
Comments:
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Era bom que todas as instituições culturais portuguesas funcionassem como a Cinemateca Nacional. Um Museu do Cinema que respira muita vitalidade!
Um texto destes devia ter tido 300 comentários! Se gosto de cinema a ele (Bénard) se deve. O melhor cinema que vi por atacado na Cinemateca e Gulbenkian (cinema Americano anos 40 e 50, Lubitsch, Lang, Hitchcock, Ford, etc., etc.,)a ele sé deve. Enfim, "as time goes by", os cães ladram e o Bénard continua. E viva o Benim (que conhwço por um romance do Chatwin, imagine-se)
bem mas para quando os outros...a história dos grandes realizadores do passado está feita e preservada na memória dos cinéfilos e só nessa Mas e agora os novos realizadores, será que são toods assim tão elitistas?....ou terão que ficar á espera que apareça o outro Bernard que os dê a conhecer?
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